Wednesday, March 09, 2005

Passeando por um mar de ruínas...



De todo o meu espólio fotográfico, se há uma foto que melhor descreve o sentimento vivido numa contraposição ao estar deambolatório e citadino, esta é essa foto.
Já não me recordo quando foi, mas sei que aconteceu devido a mais um dos devaneios que o amigo Tiago me convidava a participar. Recordo que na noite anterior a esta foto tinhamos ido para Guimarães a uma festa de anos de um amiga dele. Nesta altura era frequente irmos a festas de anos de amigas um do outro.
Eu tinha chegado do Algarve um dia antes da festa e nem fazia ideia para o que vinha quando me meti no comboio. Já não era a primeira vez que o vinha visitar, nem sequer a primeira vez que nos metiamos em aventuras destas, mas esta teve um sabor bastante diferente.

Nesta altura o Tiago morava com os avós dele numa casa um pouco fora de Famalicão, pelo que ficamos a passear-nos pelo campo a tirar fotos e a inventar coisas o dia todo.
Quando se aproximou a hora de irmos para os anos, lembramo-nos que nenhum de nós tinha nada para oferecer a aniversariante. Eu só tinha percorrido 600 e tal km para vir a esta festa, mas acho que seria uma fraca desculpa para a falta de presente. Não tinhamos muito tempo pois ainda nos faltava ir para Guimarães ter com alguêm.
Pegamos numa folha A2, uns lápis de côr, ceras, o kitt maravilha da Winsor and Newton e partimos para o terminal de autocarros.
Não me lembro muito bem como tudo correu, mas sei que algures entre uma cidade e outra, chegamos mais cedo e fomos para um café comer algo e desenhar o presente. Bons tempos estes em que a falta de tempo ou dinheiro era facilmente substituida por algo tão precioso quanto o instantâneo pintar de um quadro para oferecer.
Sei que pedi algo para comer, mas não me lembro de o ter comido, pois estavamos tão mergulhados no que faziamos que por momentos perdemos a noção do tempo e da realidade onde nos encontravamos. Os lápis espalhavam-se pelos tampos das mesas, as ceras desfaziam-se e marcavam permanentemente os estofos das cadeiras, a folha... grande de mais para uma mesa daquelas dobrava-se e derramava continuamente sobre nós.
Lembro-me do trabalho final ser algo grandioso, algo que nos encheu de orgulho pelo resultado conseguido. Era algo parcido com um corpo feminino lilás, com uma paisagem verdejante e um raiar do sol em tons azulados, era algo que ambos ofereciriamos relutantemente. Rapidamente perdeu todo o singnificado de presente e adquiriu propriedades que ambos contemplavamos admiravelmente.

O que se passou depois não é importante de se relatar, mas posso dizer que acabou às 06 da manhã na estação de comboios, com uma garafa de vinho branco oferecida pela aniversariante, um rolo de papel A2 e um sorriso estúpido escarrapachado na cara.
Fomos a Famalicão buscar as mochilas e partimos para o Gerês caçar momentos com as nossas reflex.
O tempo estava maravilhosamente londrino apesar da rusticidade das habitações, cujas pedras se mesclavam no cinza do nevoeiro. Vilarinho das Furnas ainda se encontrava a 45 minutos de distância pelos cenários que a serra nos presenteava. A humidade fazia-se sentir nas gotas que caiam, como penas, nos nossos ombros. Não me admiraria se naquele momento fadas nos observassem a descer a encosta. Pequenos seres à espreita por entre as milenares árvores que fechavam o céu. Estavamos em silêncio e sentiamos que os deuses estavam contentes.
Aproximavamo-nos do nosso objectivo, passamos a barragem, atravessamos a cascata, as curvas em cotovelo, as subidas e descidas do indomável terreno e finalmente às memórias das vidas de todos os que ali viveram.
Ali estavam todos os restos de um dia a dia de alguêm, de um pastor... de uma rapariga. As pegadas eram visíveis aos olhos de que acredita, pois nem o tempo as faz esquecer.

A foto é o resultado desses momentos junto à barragem.

Nesse dia encontrei uma telha e um cristal de candeeiro.